quinta-feira, 16 de julho de 2009

Charlie Chaplin dos Tempos Modernos

Hoje é preciso escândalo para chamar a atenção. Sacha Baron Cohen consegue-o com "Brüno", filme sobre o jornalista de moda, austríaco, homossexual. Mostra tudo. E deixa o espectador nu. Que limites, hoje, para o humor?

Nudez frontal masculina (e dançante). Dildos, muitos. Sexo com pigmeus. Mães e pais que admitem expor os filhos bebés a ácido ou emagrecê-los rapidamente desde que entrem numa sessão fotográfica. Um pastor evangélico com o dom de curar a homossexualidade. Adopção de uma criança negra - chamada O.J. para fazer justiça à herança afro-americana - por um jornalista de moda que quer ser célebre à força, usa maquilhagem, pinta o cabelo, é gay.

O que o choca mais nesta lista? Nada? Tudo? Perante Sacha Baron Cohen e "Brüno" o espectador não pode ficar passivo: desconforto, riso, confronto. Tudo, da nudez masculina aos pais sedentos por uma gota de fama por interposto bebé, está em "Brüno". E está lá para si.
"São temas incontornáveis porque são os mais importantes, que trazem divisão, polémica", diz o humorista Nuno Duarte, aliás Jel, ao Ípsilon. Sexo, raça, género. Um "buffet" que faz dos temas ditos sensíveis aquilo a que Jel, o Homem da Luta que provoca os homens com o seu machista gay, chama de "hiper-realismo".

Os métodos são os que tornaram Sacha Baron Cohen ou, melhor dizendo, Borat, numa celebridade. "Brüno" é mais uma viagem de um jovem em busca da fama na terra das oportunidades. E, pelo caminho, e com a fiabilidade que o género "mockumentary" permite, coloca um espelho em frente à cultura ocidental. Surpreende gente mais ou menos conhecida com as suas perguntas, com a sua sexualidade, com a sua estupidez. E desarma-os e desarma-nos. Forçando-nos a pensar nos limites do humor, do bom gosto. Pelo caminho, o "walk of fame" de Brüno torna-se "walk of shame".

"Brüno" é, verdade, "Borat" com melhor guarda-roupa. E Brüno é Borat, que é Ali G, que é Sacha Baron Cohen.... No trabalho do humorista britânico, uma máscara mediática esconde sempre outra. Descodifique-se, para se avançar: ele encara as personagens, exageros dos exagerados, "diseurs" do indizível, como ferramentas. Sobre Borat, disse, em rara entrevista à "Rolling Stone" (2006): "Pelo facto de ele ser anti-semita, ele permite às pessoas baixarem as defesas e exporem o seu próprio preconceito, seja o anti-semitismo ou a aceitação do anti-semitismo".

O palhaço da turma

Sacha Baron Cohen adora estereótipos e sabe quais são os pontos sensíveis em que espeta o dedo. Isso faz dele um comentador, corrobora Robert Thompson, director do Centro Bleier para a Cultura Popular e Televisão. "Ele é alguém cujas opiniões ouvimos". E, mais depressa do que conseguirá dizer "Borat: Aprender Cultura da América Para Fazer Benefício Glorioso à Nação do Cazaquistão", já está a girar a mira para outro alvo. Agora é a moda mas, mais do que tudo, a homofobia. Não é a homossexualidade.

Cohen "incorpora as características que quer parodiar e desencadeia" assim as reacções mais cruas, compara Filipe Homem Fonseca, um dos autores de "Contra-Informação", metade dos Cebola Mol, argumentista total. "É o agente provocador perfeito. É o humor de observação levado ao extremo. E isso é brilhante".

Depois de Borat Sagdiyev reflectir os preconceitos em relação aos estrangeiros (a "Vanity Fair" escrevia, num perfil de 2006, que Cohen vestiu Borat de fato cinzento, mal amanhado, porque "sabe que a maior parte dos americanos esperam que um estrangeiro cheire mal") e aos judeus, Brüno vem embalado como uma efígie do que o cidadão médio acha que é um homossexual-tipo.

Sempre vestido de forma extra-chocante e hiper-sexual (porque também se esperará, arrisquemos, que um homossexual seja provocador e exibicionista), viaja pelos EUA com o objectivo de se tornar célebre. E isso cruza-se com a sua capacidade de capturar o "zeitgeist" e de o regurgitar - a comédia de Cohen é tão visceral quanto isso. Usa, tal como Jel na sua comédia "Vai Tudo Abaixo" (SIC Radical) - Jel sente-se honrado com este paralelismo -, uma "estética de apanhados mas com personagens bem definidas. E nesses apanhados, há o injectar de um certo surrealismo, de uma certa provocação na realidade. Isto é muito moderno, é uma reacção aos tempos. É contemporâneo, é agora".

Agora? "É a sociedade do espectáculo, em que tudo é espectacularizado: a guerra, a política, o desporto. E a possibilidade de intervir nisso, surrealizando, é muito tentadora". Algures, ao longe, ao ver "Borat" e agora "Brüno", ouvimos o ruído da cultura ocidental a partir-se em bocadinhos. Pelo choque, pelo desconforto, mas também porque a mescla de situações reais e a ficção débil (serve apenas o propósito de coser um gag ao seguinte) se adequa ao mundo da web, da tele-realidade, das celebridades de pacote, dos "household names" instantâneos. E é suja, chocante, "in your face".

Robert Thompson, o académico mais citado dos EUA pelo interesse que desperta hoje essa ampla secção da cultura a que se chama pop, vê Sacha como o "palhaço da turma", cuja última partida foi tão forte que todos esperam a seguinte com expectativa. E, ainda por cima, "estamos numa grande sala de aulas em que há celebridades em tantas e múltiplas dimensões que é preciso baixar as calças e dizer asneiras na sala para chamar a atenção. E que pode ser humor politicamente esclarecedor, mas que também pode ser nojento só para ser nojento".

Humor sem limites

Três anos depois de "Borat", o novo registo de Cohen está carregado de mais e mais intencionalidade. A nudez masculina, o homem-com-homem, Jesus vs. Gays, estão para Sacha Baron Cohen como W. Bush e Charlton Heston estavam para Michael Moore. O valor-choque de Cohen, ora crucificado, ora elogiado como pioneiro - à saída de "Borat", George Meyer, argumentista de "Os Simpsons", dizia: "Sinto-me como alguém a quem deram a ouvir o 'Sgt. Pepper's Lonely Heart Club Band' pela primeira vez" -, é certeiro. Não só sabe escolher os temas, como é capaz de os atacar "directamente na jugular". "E  isso é que o torna relevante", diz Thompson ao telefone com o Ípsilon a partir da Universidade de Syracuse.

Rui Sinel de Cordes sabe bem do que se está a falar. Tal como Jel, já foi agredido na rua, já recebeu ameaças de morte por causa de "Preto no Branco", o seu programa de humor na SIC Radical. Fátima, estrangeiros, góticos, mulheres vítimas de violência doméstica, cancro, cadeiras de rodas, vale tudo. "Não existem limites no humor. O limite é se tem piada ou não." Filipe Homem Fonseca, Jel e os três autores de "Bruno Aleixo" (SIC Radical) concordam. Pedro Santo, João Moreira e João Pombeiro classificam o trabalho de Baron Cohen como "um Apanhado evoluído, 2000, 2.0, redux". E como não costumam navegar as áreas dos temas sensíveis, apenas acham que "a riqueza do humor não tem muito a ver com pôr ou não o dedo na ferida. Há bom e mau humor que põe o dedo na ferida e o mesmo se aplica ao que não põe o dedo na ferida. Pôr o dedo é uma opção".

Já Rui Sinel de Cordes é fervoroso adepto do humor das partes onde o sol não brilha. "Faço humor negro porque gosto. E se gosto existem mais pessoas que gostam". Ao pensar em Sacha Baron Cohen, lembra-se da comédia de Bill Hicks e George Carlin - que desafiaram limites humorísticos e culturais há duas, três décadas. "Nos EUA fazia falta um humorista que voltasse a desafiar o sistema. Sacha Baron Cohen é capaz de ser o humorista que conseguiu, nos últimos 20 anos, seguir o trabalho deles".

São tempos bons para a comédia, assegura-nos Thompson. "Especialmente agora, neste ambiente em que há tantos programas, filmes e séries televisivas que apostam nesse género de temas não-acredito-que-eles-fizeram-isto. Na Comedy Central, o 'South Park' fá-lo todas as semanas e mesmo nos generalistas, temos o 'Family Guy' e afins. No breve período desde que 'Borat' se estreou, estranhamente, a noção de comédia escandalosa e excessiva tornou-se praticamente ortodoxa". Como as comédias de Judd Apatow ("Virgem aos 40 anos", "Um Azar do Caraças") têm comprovado, professor Thompson? "Sim, são um exemplo de quão 'mainstream' isto se está a tornar."

Sacha Baron Cohen é, então, como um miúdo com fósforos num mundo regado a querosene, e onde há já fogueiras a bruxulear lá ao longe. A polémica, os tais temas fracturantes, são o seu ponto de partida. Depois, resta marcar a diferença. Nas semanas que antecederam a estreia de "Brüno", ele assombrava as redacções dos jornais e a Internet. Exímio manipulador, estava em todo o lado em digressão promocional. Aparições em figurinos surreais em todas as cidades. Entrevistas dentro da personagem ("Quero ser o austríaco mais famoso desde Hitler"; "O filme que acabei de fazer é o mais importante documentário sobre um gay branco desde 'A Paixão de Cristo'"). Filipe Homem Fonseca elogia-lhe a consistência. "Sacha Baron Cohen é o Dias Loureiro da comédia. Mantém a história até ao fim". Como Andy Kaufman (1949-1984, performer americano - Jim Carrey interpretou-o em "Homem na Lua"), em relação ao qual nunca sabíamos onde acabava a personagem e começava o homem, é tudo parte do espectáculo.

Espírito kamikaze

E, como não podia deixar de ser, com ele vem a polémica. A Gay and Lesbian Alliance Against Defamation (GLAAD) viu duas versões inacabadas do filme, a convite da Universal. E Rashad Robinson, director dos programas de média da GLAAD, foi à imprensa dizer que "as intenções de quem fez o filme estão no lugar certo - a sátira deste género pode desmascarar a homofobia - mas ao mesmo tempo ele pode aumentar o desconforto das pessoas em relação à nossa comunidade".

Eis a palavra-chave: desconforto. Tal como a Human Rights Campaign, a GLAAD acha que "Brüno" devia vir com um aviso prévio. Qualquer coisa como: "Este filme tem como objectivo expor a homofobia". Mas Aaron Hicklin, editor da revista "Out", vê mais além. "O filme faz algo enormemente importante, que é mostrar que as atitudes das pessoas podem mudar, num segundo, quando elas se apercebem que és gay. Os 'habituées' dos multiplexes normalmente não se sentariam para ver uma palestra de duas horas sobre homofobia, mas é exactamente isso que vai acontecer", disse ao "New York Times". E vai pôr Sacha na capa de Agosto, tal como a "GQ" fez este mês nos EUA.

Uma das mais-valias do fenómeno Cohen é a tal lógica das bonecas russas: há vários níveis de entendimento de uma piada, de uma caricatura, e se há espectadores que vão vê-lo "ao engano, acabam também por ser alvo da paródia. Isso é a sofisticação maior", comenta Filipe Homem Fonseca. Não esquecendo os danos colaterais - neste caso os entrevistados, os apanhados. "Às vezes tem de haver baixas entre civis", ri-se Filipe Homem Fonseca. "Isso faz parte do dispositivo. Quando fazes uma piada, mesmo quando contas uma simples anedota, há sempre uma rasteira."

O risco não é só para os incautos apanhados (que podem ser muito pouco inocentes - "Uma coisa é eu fazer uma imitação do José Sócrates, outra é apanhar o José Sócrates à minha frente com o meu megafone. Tem muito mais força, força política", sublinha Jel). Também sobra risco para os protagonistas que têm boas hipóteses de apanhar. Melhor ainda, garante Jel no seu espírito kamikaze. "Dispara a nossa adrenalina, é sem rede. Criativamente, é muito inspirador." Cohen, na tal entrevista à "Rolling Stone", apenas resume que o carinho intensivo dos seus pais lhe dá hoje "a força para sair para junto de uma multidão de pessoas que te odeiam". No fundo, o mundo é a sua ostra e os EUA a sua pérola de experiência sociológica. Ou serão um irrecuperável grão de areia? Ele testa os limites porque "o timing é tão volátil que é rico para a comédia e [ele] vai atrás de coisas que nos deixam desconfortáveis, que nos testam", postula Thompson no seu púlpito de peritagem pop.

"Brüno" chega numa altura em que parece existir mais espaço para todos os tipos de comédia. Agora, diz-nos Thompson, nos EUA a última fronteira dos tabus é a palavra "preto", mas continua a haver "regras diferentes para salas diferentes". Se for a de Jay Leno, como era a de Herman José no infame episódio censório da Rainha Santa, é melhor não abusar. O "mainstream" é demasiado condicionado pelas regras e convenções genéricas. Nos nichos, no cabo, já é outra coisa.

A chegada de mais um objecto Cohen à comédia é como a chegada de mais um filme de Michael Moore aos EUA - e cabe agora a "Brüno" provar se a partida seguinte do palhaço da turma vale a pena. Mas uma coisa ele conseguiu: é um dos ingredientes de um caldo cultural mais tolerante e ajudou a confeccioná-lo porque a cada aparição mais ultrajante/hilariante (risque o que não interessa) se clarificam os novos limites. E depois há o resto.

"Uma das razões pelas quais vemos mais desta comédia hoje é porque o ambiente cultural é muito mais tolerante. Temos canais de cabo onde estas coisas podem passar, uma indústria cinematográfica com um sistema de classificações que as permitem. Há um lugar para elas que não existia nos anos 1950", diz Robert Thompson. "Outra coisa é um ambiente cultural tão fragmentado, com milhares de músicas disponíveis no iTunes, um número infinito de coisas na Internet e 300 canais de cabo, muitos dos quais a produzir programação original. É preciso fazer uma coisa muito escandalosa para chamar a atenção".
Diríamos que "Brüno" o conseguiu.


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